Dez de dezembro lembra o nascimento de uma menina que chegou ao mundo em plena travessia, numa Ucrânia marcada pelo medo e pela fuga, onde sua família judaica caminhava sem destino fixo — e, sem saber, já lhe oferecia a primeira experiência de deslocamento, essa sensação de pertencer e ao mesmo tempo não pertencer, que mais tarde atravessaria tantos de seus personagens. Pouco depois desembarcaram no Brasil, primeiro em Maceió, depois em Recife. A infância de Clarice se formou entre idiomas diferentes, leituras atentas e uma observação intensa do que havia à sua volta, como se tudo no mundo guardasse uma vida própria que exigia sua atenção. O hábito de olhar demoradamente para as coisas começava a moldar sua sensibilidade antes mesmo que a escrita se tornasse uma escolha. Na juventude, o estudo do Direito parecia anunciar uma profissão sólida, mas algo nela seguia insistindo em outro caminho; e esse impulso, sempre acompanhado pelo medo, a empurrava para uma zona invisível em que a palavra surgia como necessidade. O jornalismo veio cedo, os anos no exterior se estenderam, os filhos cresceram ao redor da máquina de escrever apoiada no colo, e tudo isso compunha uma vida em que qualquer acontecimento podia acionar aquela espécie de clarão íntimo que exigia ser dito, ainda que o indizível resistisse.
Mesmo o incêndio que feriu sua mão não interrompeu o movimento da escrita; apenas o tornou mais consciente, mais lento, mais próximo da própria dor. Seus textos nasceram de uma percepção que se estende sobre o mínimo — um ovo, um rato morto, uma garfada de comida — e faz dessas miudezas uma abertura para o desconhecido.
Ao longo de toda sua obra, Clarice moveu-se de mão estendida no escuro, tocando o que encontrava sem medo de descobrir o que não gostaria de ver, e talvez por isso sua literatura permaneça tão perturbadora: ela desmonta o que julgamos evidente e nos devolve ao primeiro espanto, aquele que quase esquecemos.
